A marcha até aqui irrefreável de Donald Trump expõe a frustração dos eleitores americanos e a crise dos republicanos, que colhem os resultados de sua aposta no radicalismo
RODRIGO TURRER E TERESA PEROSA
A esta altura da corrida presidencial americana, a cúpula do Partido Republicano deve estar imaginando que Donald Trump é uma encarnação de Jason Voorhess, o assassino da máscara de hóquei da série de filmes de terror Sexta-feira 13 – e que, mesmo levando tiros, machadadas, facadas e todo tipo de golpe, incrivelmente nunca morre. Nas prévias internas do partido, os dirigentes republicanos, por várias vezes, acharam ter descoberto o caminho para estancar o bilionário de retórica populista e vitriólica em sua marcha rumo à candidatura à Casa Branca. Em todas as ocasiões, eles foram frustrados. Isso ocorreu na primária no Estado de Iowa, em fevereiro, vencida pelo senador Ted Cruz.
Logo em seguida, no entanto, Trump venceu de forma acachapante em New Hampshire. A história se repetiu na semana passada. A frente anti-Trump se encheu de esperanças depois que ele perdeu nos Estados de Kansas e Maine para Cruz, e no território de Porto Rico para o senador Marco Rubio. Não deu tempo para comemorar. Na terça-feira, dia 8, Trump venceu em Michigan, Mississippi e Havaí e silenciou os que achavam que a ofensiva contra ele passara a dar certo.
O partido está cada vez mais atordoado. A candidatura de Rubio, o preferido da cúpula republicana, soma duas modestas vitórias, múltiplos terceiros lugares e, em alguns Estados, nem isso. Está se desmilinguindo. As últimas fichas de Rubio para permanecer na disputa serão jogadas na Flórida, seu Estado natal, onde será disputada uma primária na terça-feira, 15 de março. Se Trump confirmar as pesquisas e vencer na Flórida e também em Ohio (Estado de John Kasich, outro participante do páreo republicano, onde também haverá prévias na terça-feira), a cúpula do partido, talvez, se veja na contingência de apoiar Cruz. Do ponto de vista do establishment republicano, Cruz, o controverso senador do Texas, conservador radical, é quase tão indigesto quanto Trump. No final de fevereiro, o senador republicano Lindsey Graham, da Carolina do Sul, declarou: “Se você assassinasse Ted Cruz no meio do Senado e o julgamento fosse no Senado, ninguém o condenaria”. Agora, diante da irrefreável ascensão de Trump, até Graham passou a admitir a hipótese de apoiar Cruz.
O desespero tem motivo. No final de fevereiro, dois integrantes da elite republicana, o senador John McCain, que perdeu a eleição de 2008 para Barack Obama, e Mitt Romney, o ex-governador de Massachusetts que perdeu para Obama em 2012, atacaram duramente Trump, buscando enfraquecê-lo. McCain chamou o bilionário de “irresponsável, desinformado e perigoso para a segurança nacional dos Estados Unidos”. Romney foi ainda mais assertivo e pungente. Citando John Adams, um dos pais fundadores dos Estados Unidos, sugeriu que a figura de Trump evoca traços do totalitarismo e amplifica um “tipo de raiva que levou outras nações para o abismo”.
As advertências de McCain e Romney, somadas a milhões de dólares gastos em propaganda negativa contra Trump, não surtiram efeitos, escancararam o racha do partido e ainda expuseram a incongruência dos republicanos nos últimos anos. Quando candidato, Romney cortejou o apoio de Trump – não chegou a “implorar seu apoio”, como afirmou o magnata no Twitter, mas chegou perto. McCain fez o mesmo em 2008. Foi McCain quem abriu a caixa de pandora da direita conservadora americana ao convidar para ser sua vice a musa do grupo radical Tea Party, Sarah Palin, hoje aliada de Trump.
A tensão entre conservadores radicais e moderados sempre foi um problema no Partido Republicano. Em 1964, o ultraconservador Barry Goldwater conseguiu a candidatura à Presidência contra a vontade da cúpula partidária. Em 1981, Ronald Reagan só conseguiu virar candidato à Casa Branca ao apaziguar as tensões entre os grupos. Mas, depois da crise financeira de 2008, a insurgência dos radicais virou uma erupção incontrolável – Trump se aproveita da ascensão do sentimento antipolítico que tomou parte dos Estados Unidos.
A tensão entre conservadores radicais e moderados sempre foi um problema no Partido Republicano. Em 1964, o ultraconservador Barry Goldwater conseguiu a candidatura à Presidência contra a vontade da cúpula partidária. Em 1981, Ronald Reagan só conseguiu virar candidato à Casa Branca ao apaziguar as tensões entre os grupos. Mas, depois da crise financeira de 2008, a insurgência dos radicais virou uma erupção incontrolável – Trump se aproveita da ascensão do sentimento antipolítico que tomou parte dos Estados Unidos.
Justiça seja feita: quando o Tea Party despontou, nos idos de 2008, oPartido Republicano estava perdido. Depois de oito anos de um desastroso governo George W. Bush e com a crise econômica que levaria muitas famílias à bancarrota, o partido não sabia como derrotar a estrela emergente do Partido Democrata, Barack Obama, o senador negro, eloquente e bem-apessoado. A saída foi investir na radicalização conservadora. “Naquele momento, havia pouco a ser feito: Obama era um tsunami, e a única saída era encampar o movimento radical”, afirma o sociólogo Jacob Heilbrunn, autor deThey knew they were right: the rise of the neocons, um livro sobre a ascensão dos neoconservadores na política americana.
Oito anos depois, os republicanos e a política americana colhem os frutos do que plantaram. O gênio do populismo saiu da garrafa e tomou a forma de Donald Trump. A raiva do eleitor americano pode ser explicada por alguns números. O total de empregos na indústria dos Estados Unidos caiu 36%, de 19,3 milhões, em 1979, para 12,3 milhões, em 2015, enquanto a população aumentou 43%, de 225 milhões para 321 milhões. A partir de 2000, a mobilidade social tão característica dos Estados Unidos estagnou, a classe média encolheu e os americanos se moveram para o andar de baixo – o número de domicílios com renda anual abaixo de US$ 35 mil, considerados pobres, aumentou. Com o aumento das importações da China e a crescente automação da indústria americana, os empregos da classe média operária americana desapareceram. Os brancos eram o grupo majoritário nessa classe média operária. Foram eles que viram o sonho americano desaparecer.
Em um estudo publicado em 2015, o último Nobel de Economia,Angus Deaton, e a economista Anne Case revelaram os efeitos da epidemia de heroína e do consumo de álcool entre os brancos sem formação universitária, o grupo mais afetado pelo aumento da mortalidade. Era nesse grupo também que havia disparado o número de suicídios a partir de 2002. O que Trump tem a ver com isso? Tudo, afirma a economista Anne Case. “Está claro que muitos brancos americanos nesse grupo demográfico sentem que estão em crise”, escreveu Case, “e que os candidatos, na tentativa de se aproximar de um bloco de eleitores substancial em 2016, estão moldando seus programas eleitorais pensando em um público que se sente cada vez mais invisível.”
Com a crise financeira dos Estados Unidos, em 2008, engrossou o caldo em que o populismo de Trump germinaria. “Foi a crise financeira que revelou as ligações da política americana com Wall Street e o desastrado socorro do governo americano aos bancos, que colocou o prego no caixão da confiança dos americanos no governo”, escreveu o economista Daron Acemoglu, autor do livro Por que as nações fracassam. “Uma vez que a confiança no governo foi destruída, quem não se beneficiou do progresso dos anos anteriores tornou-se presa fácil para a retórica populista.”
Trump se aproveita como poucos desse mal-estar dos brancos sem formação superior. As pesquisas indicam que ele consegue atrair para as urnas exatamente esse tipo de eleitor, que nas primárias costumeiramente fica em casa. Em relação às duas últimas eleições presidenciais, o Partido Republicano conseguiu 20% a mais de inscrições de brancos às vésperas das primárias. Tudo não passaria de um estratagema político se Trump estivesse jogando limpo – mas ele não está. Seu discurso raivoso e anti-imigração atraiu para o Partido Republicano dos supremacistas brancos do grupo terroristaKu Klux Klan aos xenófobos antimuçulmanos do Partido pela Liberdade da América.
A elite republicana finalmente parece ter entendido que Trump não é uma piada. Como a estratégia de derrotá-lo nas prévias nos Estados não está dando resultado, os líderes republicanos trabalham agora para impedir que Trump chegue à convenção do partido, marcada para julho, com um número de delegados suficientes para tornar sua candidatura incontestável. Trump tem hoje 458 delegados. Ele precisa de outros 779 . Ainda que as investidas da cúpula partidária deem certo, o mal está feito. Com seu discurso, Trump mobilizou um eleitorado com queixas legítimas e um genuíno sentimento de esquecimento, mas voltado contra falsos bodes expiatórios. Mesmo que a cúpula republicana tire Trump do páreo, ou mesmo que Trump perca nas eleições nacionais, a frustração desse eleitor amargurado e enfurecido deverá continuar a assombrar os Estados Unidos.


Postar um comentário
Blog do Paixão